Sunday, September 30, 2012

Acesso das Mulheres à Justiça: Tratando das Barreiras nos Processos Judiciais

O relatório da ONU Mulheres de 2011-2012 denominado "Progresso das Mulheres do Mundo: Em Busca de Justiça", analisa o acesso das mulheres à justiça, a partir de marcos legais de justiça para as mulheres durante e após os conflitos.
As mulheres freqüentemente encontram barreiras no acesso à justiça. Seus múltiplos papéis produtivos e reprodutivos implicam em que elas geralmente não tenham tempo suficiente para gastar em defender suas causas, então, simplesmente desistem delas. As mulheres podem não ter os recursos necessários para buscar justiça ou não estão conscientes das opções legais disponíveis para elas. Às vezes, enfrentam a desaprovação social para buscar justiça, especialmente nos casos de violência doméstica ou sexual.
AWID falou com a professora Charlotte Bunch, do Centro para a Liderança Global das Mulheres, sobre o relatório.
Por Kathambi Kinoti

AWID: A ONU Mulheres (e o UNIFEM anteriormente) produz um relatório periódico sobre a situação das mulheres. Qual é o significado deste relatório anual, em especial o tema deste ano "Em Busca de Justiça?"
Charlotte Bunch (CB): O relatório chama a atenção do mundo e traz legitimidade para algumas das reivindicações que tem sido feitas pelos movimentos de direitos das mulheres. Isso nos dá uma ferramenta para trazer de volta nossos esforços e exigir que os governos prestem atenção às questões sobre os direitos das mulheres.
O relatório deste ano é particularmente bom porque se concentra em uma questão que temos levantado: Apesar de todas as informações e conhecimento que nós temos, por que há uma lacuna na implementação dos direitos das mulheres? Em vez de uma abordagem tecnocrática para as questões, é importante encontrar formas práticas para que as informações e serviços alcancem as mulheres, e assim capacitá-las a ingressar no âmbito da justiça. Por exemplo, há alguns anos, uma estratégia utilizada nos EUA para educar as mulheres sobre HIV e AIDS foi tornar as informações disponíveis em lojas e salões de beleza.

AWID: O relatório confirma que as mulheres são muito mais propensas a relatar incidentes de assalto do que de violência sexual, ainda que o estupro seja mais comum do que roubo. No Egito, por exemplo, mais de 40% das mulheres foram vítimas de violência sexual e menos de 10% estão dispostas a denunciá-lo. Menos de 10% foram vítimas de roubo, e elas são muito mais propensas a relatar isto. Por quê?
CB: Roubo não tem a associação moral negativa que a violência sexual tem, e assim, as sobreviventes não são revitimizadas ou envergonhadas por relatá-lo. Em muitos lugares, o sexo e a sexualidade são vistos como algo vergonhoso. Mesmo em países onde muitos progressos têm sido feitos no combate à violência contra as mulheres, sobreviventes de estupro geralmente pensam que fizeram algo errado para ter atraído a violência para si. Elas "saíram quando não deveriam" ou "caminharam pelo lado errado da rua", ou "se vestiram de maneira muito provocante".
O relatório mostra que o sistema perpetua o estigma, as mulheres são revitimizadas pelos processos de justiça. Recursos escassos são assigandos para coleta e processamento de evidências forenses. No escândalo do kit de estupro*, cortes de orçamento relegaram o andamento dos kits de estupro para uma categoria de não-prioridade, porque "a maioria das mulheres não registram acusações de estupro." A situação é pior para as mulheres que não têm conhecimento dos seus direitos

AWID: O relatório sugere uma série de estratégias para lidar com as taxas de subnotificação e atrito, como balcões de atenção unificados e postos policias somente de mulheres. Quais devem ser as prioridades mais altas na resolução destas questões?
CB: As prioridades dependem do contexto. Eu fortemente apóio os balcões unificados que torna mais fácil para as mulheres descobrir o que elas podem fazer. Em alguns países, postos policiais somente de mulheres acabaram sendo bem-sucedidos, em outros eles receberam poucos recursos e foram considerados como menos importante do que as delegacias de polícia regulares.
Precisamos pensar criativamente sobre a localização: qual é o melhor lugar para as mulheres terem acesso aos serviços? Os balcões de atenção podem ser incorporados dentro dos centros de saúde, onde as mulheres podem obter todas as informações que elas precisem. Pode ser estratégico localizá-los no mesmo lugar que as clínicas para crianças, porque as mulheres tendem a ter mais cuidado com seus filhos/as do que com si mesmas. Então, enquanto elas levam seus bebês para a vacinação, elas têm acesso a informações sobre onde procurar ajuda para a violência doméstica, ou que provas são necessárias preservar em casos de violência sexual.
As mulheres precisam ter um lugar para ir por sejam quais forem os problemas de gênero que elas enfrentam. Assim, elas estarão mais propensas a fazer uso dos serviços disponíveis. Muitas vezes elas são impedidas devido a suas obrigações domésticas e de cuidado, e pelo receio de ser vistas notificando seus casos. Ter várias etapas diferentes ao longo dos trâmites da justiça em diferentes locais torna isso ainda mais difícil para as mulheres.

AWID: O relatório mostra que as mulheres estão excessivamente sub-representadas nos sistemas de justiça, especialmente nos serviços policiais. Sobreviventes de violência sexual na maioria das vezes ficam mais à vontade em relatar os seus casos para oficiais de polícia do sexo feminino. Por que isso acontece, e por que as mulheres estão tão sub-representadas nos tribunais, no Ministério Público e na polícia?
CB: Dado o estigma em torno da violência sexual, as mulheres presumem que policiais femininas vão acreditar nelas, e que os homens podem ridicularizá-las ou não levá-las a sério.
A sub-representação pode ser atribuída aos estereótipos de gênero e representações patriarcais da autoridade. A polícia representa autoridade e está associada com controle físico e coerção. Atualmente mais mulheres trabalham na esfera pública, mas muitas pessoas ainda não as associam com este papel.
Feministas muitas vezes enxergam os sistemas de justiça como abusivos às mulheres, assim tendem a não defender o recrutamento de mulheres para esses sistemas. Mas esses são serviços essenciais e há necessidade de haver um maior recrutamento de mulheres para mudar a cultura de abuso e corrupção que existe neles.

AWID: A CEDAW já existe há 32 anos e a maioria dos países o ratificou. Isto obriga os Estados-partes a assegurar o acesso das mulheres à justiça. Por que a Convenção e seus processos relacionados não fizeram progressos mais rápidos para garantir o acesso das mulheres à justiça?
CB: A CEDAW tem sido tão eficaz como qualquer outra convenção de direitos humanos, o que significa dizer que as convenções são fundamentalmente sobre a definição de padrões e em colocar pressão política sobre os governos. Embora seja juridicamente vinculativas, geralmente não são executáveis. Seu sucesso depende do compromisso dos países com o tema e do quanto eles se preocupam com a sua reputação na comunidade internacional. É uma ferramenta muito importante que ajuda a expor o que precisa ser feito, mas ela não pode fazer isso acontecer se o governo não se preocupa.
Inicialmente, os progresso na implementação da CEDAW foram impedidos, porque muitos governos simplesmente não se importavam, e em segundo, porque lida com hábitos e questões culturais e sociais muito amplas, ao contrário, por exemplo, da Convenção contra a Tortura, que é mais aceita transculturalmente. Mudanças sociais são lentas e nem sempre são lineares. Por exemplo, sucessivas mudanças de regimes políticos dentro de um país podem implicar em resultados bons ou ruins para os direitos das mulheres.
O Capítulo 1 deste relatório destaca casos que foram ganhos com base na CEDAW. Isto ilustra o seu papel como uma ferramenta que as mulheres podem usar para a mudança.

AWID: A criação da ONU Mulheres, em janeiro de 2011 foi recebida com grandes expectativas pelas/os defensoras/es dos direitos das mulheres. De que maneira você acha que o seu status aumentado deveria facilitar melhor acesso à justiça?
CB: Os seis primeiros meses de existência da ONU Mulher foram gastos para criar a sua estrutura desde as unidades existentes que ela substituiu dentro da burocracia da ONU. Somente agora ela está começando a se mover para o nível dos países e mais de programação.
Em nível global, a ONU Mulheres tem agora uma maior voz e pode falar em níveis mais elevados do que as mulheres poderiam antes. Esperamos vê-la ter uma voz maior em nível das representações regionais e nacionais em breve. Nos próximos 1-2 anos, a sociedade civil deve acompanhar o desenvolvimento de planos nacionais sistemáticas, de modo que esteja a par com outras agências da ONU nos escritórios nacionais.

AWID: Você vê algumas lacunas no relatório?
CB: O relatório identifica as barreiras que as mulheres enfrentam e elabora muitas boas recomendações, mas não chega a uma forte análise do papel do controle e do poder social e econômico na restrição do acesso das mulheres à justiça. Costuma-se dizer: "As leis mudaram, por que as mulheres não denunciam as violações?", como se fosse sobre as mulheres tendo atitudes retrógradas, não sobre as barreiras para que isso aconteça.
O relatório recomenda maior apoio às organizações legais das mulheres, mas não cita os movimentos de mulheres como uma força política para a mudança de atitudes e sistemas. Isso está ligado ao seu silêncio em torno de nominar o poder e o controle.
Por outro lado, ele é um dos melhores relatórios da ONU que eu já vi. É claro e acessível, e emprega gráficos úteis, tais como tabelas. É um excelente recurso para a discussão com os governos sobre a melhoria do acesso das mulheres à justiça, e que as barreiras permanecem mesmo quando boas medidas foram introduzidas. Quando as delegacias somente de policias femininas foram introduzidas no Brasil, elas foram vistas como uma boa idéia. Mais tarde se percebeu que elas eram consideradas como secundárias, e oficiais do sexo feminino que nelas trabalhavam acharam difícil ser promovidas ou ser levadas a sério, já que estas não eram vistas como delegacias de polícia 'reais'. Então, medidas tiveram que ser tomadas para sanar este problema.
O impacto do relatório dependerá de como as agências da ONU, governos, organizações e movimentos de direitos das mulheres, o usem como uma ferramenta para melhorar o acesso das mulheres à justiça.


* Quando uma mulher é submetida a um estupro, há uma série de evidências físicas que podem fornecer provas do crime. .  http://www.hrw.org/audio/2010/03/18/untested-rape-kits-rights-watch-27 . Noa Estados Unidos, por vários anos, esta evidência não foi rotineiramente coletada e usada nos julgamentos de estupro.

Fonte: AWID 
Publicado originalmente em inglês em 04/11/2011

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