O relatório da ONU Mulheres de 2011-2012
denominado "Progresso das Mulheres do Mundo: Em Busca de Justiça",
analisa o acesso das mulheres à justiça, a partir de marcos legais de justiça para as mulheres durante e após os conflitos.
As mulheres freqüentemente encontram barreiras no acesso à
justiça. Seus múltiplos papéis produtivos e reprodutivos implicam em que elas
geralmente não tenham tempo suficiente para gastar em defender suas causas,
então, simplesmente desistem delas. As mulheres podem não ter os recursos
necessários para buscar justiça ou não estão conscientes das opções legais
disponíveis para elas. Às vezes, enfrentam a desaprovação social para
buscar justiça, especialmente nos casos de violência doméstica ou sexual.
AWID falou com a professora Charlotte Bunch, do Centro para
a Liderança Global das Mulheres, sobre o relatório.
Por Kathambi Kinoti
AWID: A ONU Mulheres (e o UNIFEM anteriormente) produz um
relatório periódico sobre a situação das mulheres. Qual é o significado deste
relatório anual, em especial o tema deste ano "Em Busca de Justiça?"
Charlotte Bunch (CB): O relatório chama a atenção do mundo e
traz legitimidade para algumas das reivindicações que tem sido feitas pelos
movimentos de direitos das mulheres. Isso nos dá uma ferramenta para trazer de
volta nossos esforços e exigir que os governos prestem atenção às questões
sobre os direitos das mulheres.
O relatório deste ano é particularmente bom porque se
concentra em uma questão que temos levantado: Apesar de todas as informações e
conhecimento que nós temos, por que há uma lacuna na implementação dos direitos
das mulheres? Em vez de uma abordagem tecnocrática para as questões, é
importante encontrar formas práticas para que as informações e serviços
alcancem as mulheres, e assim capacitá-las a ingressar no âmbito da justiça.
Por exemplo, há alguns anos, uma estratégia utilizada nos EUA para educar as
mulheres sobre HIV e AIDS foi tornar as informações disponíveis em lojas e salões de
beleza.
AWID: O relatório confirma que as mulheres são muito mais
propensas a relatar incidentes de assalto do que de violência sexual, ainda que
o estupro seja mais comum do que roubo. No Egito, por exemplo, mais de 40% das
mulheres foram vítimas de violência sexual e menos de 10% estão dispostas a
denunciá-lo. Menos de 10% foram vítimas de roubo, e elas são muito mais
propensas a relatar isto. Por quê?
CB: Roubo não tem a associação moral negativa que a violência
sexual tem, e assim, as sobreviventes não são revitimizadas ou envergonhadas
por relatá-lo. Em muitos lugares, o sexo e a sexualidade são vistos como algo
vergonhoso. Mesmo em países onde muitos progressos têm sido feitos no combate à
violência contra as mulheres, sobreviventes de estupro geralmente pensam que
fizeram algo errado para ter atraído a violência para si. Elas "saíram
quando não deveriam" ou "caminharam pelo lado errado da
rua", ou "se vestiram de maneira muito provocante".
O relatório mostra que o sistema perpetua o estigma, as
mulheres são revitimizadas pelos processos de justiça. Recursos escassos são
assigandos para coleta e processamento de evidências forenses. No escândalo do kit
de estupro*, cortes de orçamento relegaram o andamento dos kits de estupro para
uma categoria de não-prioridade, porque "a maioria das mulheres não
registram acusações de estupro." A situação é pior para as mulheres que
não têm conhecimento dos seus direitos
AWID: O relatório sugere uma série de estratégias para lidar
com as taxas de subnotificação e atrito, como balcões de atenção unificados e
postos policias somente de mulheres. Quais devem ser as prioridades mais altas na
resolução destas questões?
CB: As prioridades dependem do contexto. Eu fortemente apóio
os balcões unificados que torna mais fácil para as mulheres descobrir o
que elas podem fazer. Em alguns países, postos policiais somente de mulheres
acabaram sendo bem-sucedidos, em outros eles receberam poucos recursos e foram
considerados como menos importante do que as delegacias de polícia regulares.
Precisamos pensar criativamente sobre a localização: qual é
o melhor lugar para as mulheres terem acesso aos serviços? Os balcões de
atenção podem ser incorporados dentro dos centros de saúde, onde as mulheres
podem obter todas as informações que elas precisem. Pode ser estratégico
localizá-los no mesmo lugar que as clínicas para crianças, porque as mulheres
tendem a ter mais cuidado com seus filhos/as do que com si mesmas. Então, enquanto
elas levam seus bebês para a vacinação, elas têm acesso a informações sobre
onde procurar ajuda para a violência doméstica, ou que provas são necessárias
preservar em casos de violência sexual.
As mulheres precisam ter um lugar para ir por sejam quais
forem os problemas de gênero que elas enfrentam. Assim, elas estarão mais
propensas a fazer uso dos serviços disponíveis. Muitas vezes elas são impedidas devido a suas obrigações domésticas e de cuidado, e pelo receio de ser vistas
notificando seus casos. Ter várias etapas diferentes ao longo dos trâmites da
justiça em diferentes locais torna isso ainda mais difícil para as mulheres.
AWID: O relatório mostra que as mulheres estão
excessivamente sub-representadas nos sistemas de justiça, especialmente nos
serviços policiais. Sobreviventes de violência sexual na maioria das vezes
ficam mais à vontade em relatar os seus casos para oficiais de polícia do sexo
feminino. Por que isso acontece, e por que as mulheres estão tão
sub-representadas nos tribunais, no Ministério Público e na polícia?
CB: Dado o estigma em torno da violência sexual, as mulheres
presumem que policiais femininas vão acreditar nelas, e que os homens podem
ridicularizá-las ou não levá-las a sério.
A sub-representação pode ser atribuída aos estereótipos de
gênero e representações patriarcais da autoridade. A polícia representa
autoridade e está associada com controle físico e coerção. Atualmente mais
mulheres trabalham na esfera pública, mas muitas pessoas ainda não as associam
com este papel.
Feministas muitas vezes enxergam os sistemas de justiça como
abusivos às mulheres, assim tendem a não defender o recrutamento de mulheres
para esses sistemas. Mas esses são serviços essenciais e há necessidade de
haver um maior recrutamento de mulheres para mudar a cultura de abuso e
corrupção que existe neles.
AWID: A CEDAW já existe há 32 anos e a maioria dos países o
ratificou. Isto obriga os Estados-partes a assegurar o acesso das mulheres à
justiça. Por que a Convenção e seus processos relacionados não fizeram
progressos mais rápidos para garantir o acesso das mulheres à justiça?
CB: A CEDAW tem sido tão eficaz como qualquer outra
convenção de direitos humanos, o que significa dizer que as convenções são
fundamentalmente sobre a definição de padrões e em colocar pressão política
sobre os governos. Embora seja juridicamente vinculativas, geralmente não são
executáveis. Seu sucesso depende do compromisso dos países com o tema e do
quanto eles se preocupam com a sua reputação na comunidade internacional. É uma
ferramenta muito importante que ajuda a expor o que precisa ser feito, mas ela
não pode fazer isso acontecer se o governo não se preocupa.
Inicialmente, os progresso na implementação da CEDAW foram
impedidos, porque muitos governos simplesmente não se importavam, e em segundo,
porque lida com hábitos e questões culturais e sociais muito amplas, ao
contrário, por exemplo, da Convenção contra a Tortura, que é mais aceita transculturalmente.
Mudanças sociais são lentas e nem sempre são lineares. Por exemplo, sucessivas
mudanças de regimes políticos dentro de um país podem implicar em resultados bons
ou ruins para os direitos das mulheres.
O Capítulo 1 deste relatório destaca casos que foram ganhos
com base na CEDAW. Isto ilustra o seu papel como uma ferramenta que as mulheres
podem usar para a mudança.
AWID: A criação da ONU Mulheres, em janeiro de 2011 foi
recebida com grandes expectativas pelas/os defensoras/es dos direitos das
mulheres. De que maneira você acha que o seu status aumentado deveria facilitar
melhor acesso à justiça?
CB: Os seis primeiros meses de existência da ONU Mulher foram gastos para criar a sua estrutura desde as unidades existentes que ela substituiu
dentro da burocracia da ONU. Somente agora ela está começando a se mover para o
nível dos países e mais de programação.
Em nível global, a ONU Mulheres tem agora uma maior voz e
pode falar em níveis mais elevados do que as mulheres poderiam antes. Esperamos
vê-la ter uma voz maior em nível das representações regionais e nacionais em
breve. Nos próximos 1-2 anos, a sociedade civil deve acompanhar o
desenvolvimento de planos nacionais sistemáticas, de modo que esteja a par com
outras agências da ONU nos escritórios nacionais.
AWID: Você vê algumas lacunas no relatório?
CB: O relatório identifica as barreiras que as mulheres
enfrentam e elabora muitas boas recomendações, mas não chega a uma forte análise
do papel do controle e do poder social e econômico na restrição do acesso das
mulheres à justiça. Costuma-se dizer: "As leis mudaram, por que as
mulheres não denunciam as violações?", como se fosse sobre as mulheres
tendo atitudes retrógradas, não sobre as barreiras para que isso aconteça.
O relatório recomenda maior apoio às organizações legais das
mulheres, mas não cita os movimentos de mulheres como uma força política para a
mudança de atitudes e sistemas. Isso está ligado ao seu silêncio em torno de nominar
o poder e o controle.
Por outro lado, ele é um dos melhores relatórios da ONU que
eu já vi. É claro e acessível, e emprega gráficos úteis, tais como tabelas. É um
excelente recurso para a discussão com os governos sobre a melhoria do acesso
das mulheres à justiça, e que as barreiras permanecem mesmo quando boas medidas
foram introduzidas. Quando as delegacias somente de policias femininas foram
introduzidas no Brasil, elas foram vistas como uma boa idéia. Mais tarde se
percebeu que elas eram consideradas como secundárias, e oficiais do sexo feminino
que nelas trabalhavam acharam difícil ser promovidas ou ser levadas
a sério, já que estas não eram vistas como delegacias de polícia 'reais'. Então,
medidas tiveram que ser tomadas para sanar este problema.
O impacto do relatório dependerá de como as agências da ONU,
governos, organizações e movimentos de direitos das mulheres, o usem como uma
ferramenta para melhorar o acesso das mulheres à justiça.
Fonte: AWID
Publicado originalmente em inglês em 04/11/2011